Mulheres, Bruxas e Subjetividade: Silvia Federici encontra a Psicanálise
- Silvana Souza Silva

- há 5 dias
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Mulheres, Bruxas e Subjetividade: Silvia Federici encontra a Psicanálise
Por séculos, o corpo das mulheres foi visto como ameaça, mistério ou desvio. A chamada “caça às bruxas”, estudada com rigor por Silvia Federici, não foi apenas um episódio histórico de violência: foi um projeto político que reorganizou o mundo social, econômico e subjetivo.A perseguição às bruxas coincidiu com o nascimento do capitalismo e a necessidade de controlar a reprodução, o trabalho doméstico e o corpo feminino.
Quando Federici desvela esse processo, ela revela algo crucial: não existe história do capitalismo sem a história da repressão dos corpos das mulheres.
A psicanálise, por sua vez, desde Freud, sempre se ocupou do corpo e do desejo.A pergunta que surge é inevitável:
O que acontece quando aproximamos Federici da psicanálise?
O corpo feminino como campo de poder — e de interpretação psíquica
Federici mostra que o corpo das mulheres foi reduzido a um território de controle social:• disciplinado,• moralizado,• medicalizado,• e sobrecarregado de funções reprodutivas e afetivas.
Para a psicanálise, esse corpo não é apenas biológico:é um corpo falado, marcado por significantes, idealizações e proibições.É um corpo que carrega a história da família, da cultura e das violências que o atravessam.
A caça às bruxas não perseguiu apenas práticas mágicas — perseguiu mulheres que desejavam, mulheres autônomas, mulheres fora da norma.Nesse ponto, Federici e Freud se encontram:o desejo feminino sempre foi tratado como ameaça.
Repressão, culpa e supereu: quando a história atravessa o inconsciente
Freud descreveu como a repressão funda o sujeito e como o supereu se torna instância moral que vigia, cobra e pune.
Federici descreve como a sociedade europeia construiu um supereu histórico-cultural que punia mulheres simplesmente por existirem fora da norma.
Para a psicanálise, isso deixa marcas:
● culpa sem causa aparente● vergonha do corpo● medo da sexualidade● idealizações sacrificiais da maternidade● silenciamento do desejo● fragilidade narcísica construída historicamente
Esses sintomas não surgem apenas da vida individual, mas de uma herança transgeracional de violência simbólica.
A mulher como falta? O feminino como enigma? A psicanálise precisa se reinventar.
Lacan afirmou que “A mulher não existe” — não como negação, mas como crítica à ideia de mulher universal.
Federici mostra que a história tentou, ao contrário, criar essa mulher universal: dócil, reprodutiva, submissa, disciplinada.
A aproximação entre ambas produz uma crítica potente:
✔ O feminino não cabe em normas.✔ O desejo não cabe em manuais.✔ E nenhuma teoria — nem a psicanalítica — deve universalizar a experiência das mulheres.
A psicanálise contemporânea precisa reconhecer seus próprios limites e ouvir aquilo que a história silenciou.
Desejo feminino: entre o inconsciente e a política
Para Federici, o desejo das mulheres foi colonizado.Para a psicanálise, o desejo é sempre atravessado pelo Outro.
Unindo as duas perspectivas, vemos que:
🔹 o desejo feminino é político,🔹 a subjetividade feminina é construída em relações de poder,🔹 e a clínica precisa escutar não apenas o inconsciente, mas também os discursos que atravessam o corpo.
Em outras palavras:
Não existe clínica do feminino sem considerar sua história de apagamento.
O que isso significa para a clínica psicanalítica hoje?
Significa que o consultório não é neutro.Que o sofrimento das mulheres não é apenas individual.Que a violência histórica não desaparece — ela retorna como sintoma.
A psicanálise pode contribuir quando:
✔ escuta sem normatizar,✔ questiona seus próprios pressupostos,✔ reconhece o impacto da cultura na subjetividade,✔ sustenta o direito ao desejo singular.
E pode encontrar Federici quando entende que:
👉 não há inconsciente sem corpo, e não há corpo sem história.
Conclusão: por que essa aproximação importa hoje?
Porque mulheres continuam sendo silenciadas.Porque o controle dos corpos continua sendo pauta.Porque o capitalismo segue explorando formas femininas de trabalho (produtivo e reprodutivo).E porque o sofrimento psíquico de hoje ainda carrega traços dessa violência de longa duração.
Ler Federici com psicanálise é ampliar o campo da escuta.É permitir que o que foi queimado, calado ou envergonhado possa finalmente ser dito.É transformar a clínica em espaço de elaboração — e, portanto, de potência.
Silvana Souza Silva - psicanalisa




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